· Felipe Zanini · Artigo · 8 min de leitura
De volta à nossa Natureza
O cenário atual do Movimento Escoteiro pós pandemia no Rio Grande do Sul e a busca por uma reconstrução de identidade.

No subsolo da Comunidade Luterana Martin Luther, em Porto Alegre, durante sábado ensolarado, enfileiram-se oito dos dezesseis jovens que compõem a tropa escoteira do grupo Albert Schweitzer. Em uma espécie de “telefone sem fio”, mas com movimentos e gestos em vez de palavras, aguardam o toque no ombro, indicativo de que devem se virar para observar a ação que devem passar adiante.
Enquanto os outros ramos fazem suas atividades (Lobinho, 6,5 aos 10 anos; Escoteiro, 11 aos 14; Sênior, 15 aos 17; e Pioneiro, dos 18 aos 21), cada um de acordo com a sua programação, após a finalização do jogo, os jovens da tropa escoteira sentam-se em círculo e escutam as orientações das chefes Madu (21) e Brenda (21). Ambas entraram no Movimento Escoteiro (ME) quando lobinhas, e agora, já tendo concluído todo o percurso enquanto beneficiárias (como são chamados aqueles entre 6,5 e 21 anos), atuam como voluntárias na seção. Elas separam a pequena tropa em dois grupos, em círculos menores. De pernas cruzadas, um grupo observa atentamente enquanto a chefe Madu faz o “lais de guia”, nó que forma um laço resistente que não afrouxa e que tem diversas finalidades; o outro, o “nó direito”, ensinado pela chefe Brenda, cuja função é unir dois cabos de mesma espessura.
Nalu (10) é uma jovem afetuosa e inteligente. Atenta, observa os dedos ágeis da chefe Madu e tenta imitar os movimentos. Não obtém sucesso da primeira vez, mas nem quem ensina e nem quem aprende desistem e após algumas tentativas, o jacaré que saiu do lago finalmente consegue dar a volta na árvore e retornar a sua casa. O sorriso no semblante é satisfatório.
João (10) é inquieto e libera sua energia em pulos e danças malucas com braços que balançam energicamente — dificilmente fica parado. Mas, dessa vez, a voz tranquila de chefe Brenda consegue prender sua atenção. Com calma e paciência ela consegue ensiná-lo um dos nós mais básicos do ME.
João e Nalu têm alguns meses de diferença, mas ambos entraram para o Movimento como lobinhos, em 2018. Desde então, já participaram de acampamentos, atividades regionais com grupos de todo o estado, mutirões de ação ecológica e comunitária, entre tantos outros eventos. Contudo, o ME, assim como todos os outros setores de nossa sociedade, foi fortemente impactado pela pandemia de Covid-19: suas atividades foram suspensas em março de 2020 e só puderam ser retomadas a partir de agosto de 2021, seguindo rigorosos protocolos de retorno.
”O escoteiro é alegre e sorri nas dificuldades.”
O oitavo artigo da Lei Escoteira sumariza com precisão as alterações vividas nos últimos dois anos de Movimento, pois mesmo com restrições impostas para as atividades presenciais, os encontros permaneceram, mas de forma virtual. Apesar da dificuldade de levar as atividades “ao ar livre” para o meio online, os grupos se adaptaram a esta nova (e temporária) realidade, e fizeram o melhor possível para garantir que os jovens tivessem acesso ao que o ME pode proporcionar.
Em ascensão desde 2012, o efetivo de membros registrados do Rio Grande do Sul sempre esteve entre os maiores do Brasil. Em 2019, foi atingida a marca de 15.030 registros, número que infelizmente começou a cair a partir do ano seguinte: em 2020 foram feitos 10.274 registros, e, em 2021, 6.958 (sendo 4.371 de jovens e 2.588 de adultos voluntários). Atualmente, o estado fica atrás apenas de Santa Catarina, com 8.847 registros, e São Paulo, com 18.049. Porém, mesmo com o efetivo baixo, foram realizados eventos regionais e nacionais com grande número de participantes, como a Scout e-Sports League, uma competição de jogos online que em sua primeira edição (2020) contou com cerca de 1.100 participantes.
Bernardo Rigo, membro da Equipe Nacional de Inovação e Tecnologia, chefe assistente do ramo Lobinho e um dos organizadores do evento, salienta que uma das responsabilidades do adulto voluntário é “criar atividades que sejam atrativas aos jovens. Em um momento de encontros virtuais, a Scout E-sports League funcionou muito bem”. Selecionando jogos de forma minuciosa e que se encaixassem dentro das áreas de desenvolvimento contempladas pelo Projeto Educativo dos Escoteiros do Brasil, foi possível trabalhar: “raciocínio lógico, memória, inteligência financeira e a consciência de como agir quando se ganha ou perde, sendo essas apenas algumas das competências que conseguimos trabalhar nesse evento”, relatou Bernardo.
Dos jovens que participam dos grupos atualmente, grande parte recebeu instruções de acampamento e de nós e amarras há muito tempo, se é que chegou a receber. O desafio para os adultos atualmente é, além de conseguir voltar ao ritmo das atividades em um momento pré-pandemia, conseguir passar adiante esses ensinamentos tão valiosos e práticas mantidas por gerações de escoteiros.
Para toda a família.
Companheiro de tropa de Nalu e João, Kelvyn (10) ingressou no ME junto de sua irmã, Kalytsa (17), e foram levados por sua mãe, Etiane, que é diretora administrativa do grupo. Etiane já foi chefe assistente nos ramos Sênior e Lobinho e também presidente do grupo escoteiro. Ela conta que, quando jovem, gostava muito dos acampamentos, atividades sociais e das conversas e trocas com os chefes. Ela vê no Movimento Escoteiro uma oportunidade para as crianças se desenvolverem em diversas áreas, além de ver em seus próprios filhos tais mudanças, relatando que a diferença foi nítida após a entrada no Movimento:
eles ainda não percebem isso, mas eu, como adulta, sei que muito da evolução deles enquanto pessoa, cognitiva, comportamental e social, tem a ver com o ME e com aquilo que se trabalha por trás das cortinas. É muito gratificante vê-los se tornando jovens protagonistas dos seus desejos, mas conscientes de que também têm deveres além dos direitos.
Com o efetivo regional e do grupo sendo menor entre os 15 e 21 anos, Etiane ressalta que esta é a idade mais difícil de conseguir manter o jovem interessado em fazer parte do ME: “essa fase tem interesses diferentes e, muitas vezes, a presença no grupo escoteiro pode impossibilitar o contato com os amigos que não fazem parte”.
Kalytsa está na tropa sênior do grupo e conta que o que mais gosta de fazer dentro do ME é “treinar as próprias dificuldades e crescer se desafiando no convívio com pessoas diferentes de si”. Érika (15), também da tropa sênior e filha de outra diretora administrativa do grupo, por sua vez, ressalta que entre as suas atividades favoritas estão os acampamentos de grupo, eventos que envolvem todas as seções: “é um acampamento que nos une bastante, e isso é bem especial pra mim. Principalmente no Fogo de Conselho” (cerimônia realizada ao redor de uma fogueira em que acontecem apresentações artísticas por parte dos jovens).
Durante o período de isolamento, Érika sentiu dificuldades de se manter ativa nas atividades online, e o retorno às atividades presenciais foi para ela um grande alívio:
O ME pra mim é uma das coisas mais importantes. Isso foi um dos motivos pra eu ter voltado depois da pandemia.
Depois de um longo período de quase três anos sem dormir em uma barraca, ela conta que durante acampamento realizado em agosto, a noite foi conturbada e de sono leve: “me desacostumei”. O efetivo baixo de jovens não é preocupação única dos adultos, principais responsáveis pela captação de novos membros, mas também é algo que afeta diretamente as crianças: Érika relata que sente medo do grupo infelizmente precisar fechar as portas.
De volta à nossa Natureza.
Anualmente, os Escoteiros do Brasil selecionam um tema que serve para pano de fundo e direcionamento para todas as atividades especiais realizadas durante o período. Para 2022, após todos os problemas envolvendo a pandemia e vivenciados tanto por jovens, quanto por adultos, a Diretoria Executiva Nacional (DEN) convida todos os membros a viverem o “aqui e o agora”, salientando que os últimos tempos não foram fáceis, mas que são Escoteiros do Brasil, e os convidam a se reencontrarem “de Volta à Nossa Natureza”. O distinto anual, carregando cinco cores, remete ao Escotismo (através do roxo), à terra (através do vermelho), ao sol (através do amarelo), aos mares (através do azul) e à flora (através do verde).
Gustav Beier, diretor de Métodos Educativos no grupo escoteiro Albert Schweitzer, acredita que embora o “natural” e habitual seja o jovem realizar as suas atividades ao ar livre e em meio à natureza, isto não deve ser algo obrigatório. Para ele, “tanto os jovens quanto os adultos sentiram o impacto da pandemia e do isolamento em dois momentos: um primeiro, em que se pensava que seria algo temporário e que não seria necessária uma adaptação “completa”; e um segundo, em que, tendo em vista a não melhora dos indicadores, tornou-se necessário que os adultos fizessem o seu melhor para dar continuidade na elaboração das atividades”. E tão bem ambos se adaptaram, que mesmo de dentro de casa, muitos beneficiários realizaram as etapas necessárias para a obtenção de distintivos especiais, que são adquiridos após completar em 100% da progressão pessoal e realizar atividades específicas. Para Gustav, “é necessário perder a visão de que no ME não se usa celular ou aparelhos eletrônicos, pois eles, além de terem sido extremamente necessários durante o período de isolamento, podem auxiliar no projeto educativo e na aplicação do Método Educativo Escoteiro”.